sábado, 22 de maio de 2010

A RESIDÊNCIA DO ESTUDANTE DE MEDICINA NA BAHIA - SÉCULO XIX


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Até a metade do século XX, havia em vários locais do centro de Salvador, pensões que os estudantes de Medicina chamavam de “República”. Muitos desses estudantes vieram de Estados nordestinos e de interiores baianos. Nessa época à Faculdade de Medicina, tinha a glória do saber era a referência da ciência no Brasil. O orgulho do povo baiano em que seus mais ilustres filhos, passaram por esta academia e deixaram no salão nobre dessa instituição seus retratos.
Falar das “Repúblicas” e não citar certos fatos que ocorreram em uma delas, é não falar da vida dos estudantes dessa época. As “Repúblicas” eram as moradas dos estudantes que não tinham residência nesta cidade. Ponto do início da vida acadêmica e referência do médico formado. O estudante ali chegando, trazia na sua mala às lembranças do passado familiar e a esperança de um futuro brilhante. Era ali que crescia as amizades com colegas, rápidas e quase sempre sinceras. Principalmente com os companheiros de quarto.
Na “República dos Sete Pecados”, assim chamada por seus moradores, localizada na praça dos Veteranos em frente ao Corpo de Bombeiros, cortando à rua Baixa dos Sapateiros. È um sobrado de três pavimentos, todos os andares superiores eram ocupados por estudantes e proprietário. No térreo funcionava uma loja Têxtil. Em geral, os proprietários das “Repúblicas” eram portugueses ou espanhóis que confiavam nos pais dos estudantes os pagamentos mensais das hospedagens.
Neste tempo, os livros médicos, eram quase todos em francês e pouquíssimo em inglês e outros poucos em português de Portugal. Só no início do século XX, foi que surgiram alguns livros de teses de doutores brasileiros. O que nem sempre à mesada dava para comprar e o socorro aos Sebos era inevitável, quando tinha ou recorria a empréstimo com colegas.
A “República” era o local de polêmicos debates, sobre a política, a administração de governo, finanças, estudos e peças teatrais. As maiorias dos estudantes passavam a maior parte do seu tempo na Faculdade e à noite, concentravam-se nos estudos em seus quartos. Poucos eram da boêmia, mesmo se fossem, levaram os estudos a sério. O lazer já era um motivo de descontração dos estudantes, havia teatros, raros cinemas, os circos e cabarés, como complementação já iniciando as praias como ponto de lazer.
Mas, às “Repúblicas” também eram conhecidas pelo povo como local de moços solteiros depravados e ousados, não eram mentiras e nem muitas verdades. Na realidade, local de morada e de divertimentos para alguns deles. Era assim que o povo dizia: “Eles ficam na janela, com varetas de pesca e anzol, para pescar os chapéus das senhoras que passam em baixo das janelas. Colhiam os chapéus e raramente devolviam. Quando isso acontecia às senhoras saíam apavoradas e levavam muito tempo sem passar pelo local.”
“Faziam longas serenatas, em baixo das janelas da casa da sua namorada ou pretendente. O tocador de violão não era bem visto pela sociedade da época, era um dos motivos que os pais das namoradas não aceitavam o namoro”.
“Ficavam de ceroulas nas sacadas das janelas a rirem e cantarolar, sem o mínimo pudor, não respeitavam ninguém, A polícia sempre omissa, tinha medo das represálias dos pais dos hóspedes.”
“Moça solteira, era muito difícil namorar estudante de “República”. Os pais criavam impedimentos para não haver relacionamentos. Tudo por causa das famosas “Repúblicas”.
No Terreiro de Jesus, tinha várias “Repúblicas” cada uma conhecida pelos feitos estudantis. Dentre essas, havia uma na esquina da rua Saldanha da Gama em que certa feita.”Passava neste local, uma senhora vendedora de camisão de dormir, e ofereceu para o alto da sacada a um estudante, ele prontamente, mandou a vendedora subir. Ao subir vários degraus em escada íngreme a senhora deparou com o moço bem vestido e entregou à venda. O moço levou a peça, demorou meia hora, ao voltar o moço já veio vestido com o camisão e disse-lhe: “Mamãe disse que está curtinho”. Ao vê o moço nu de cintura para baixo a mulher se assustou e rolou da escada abaixo. E nunca mais vendeu camisão”.
São essas e outras histórias que contavam avós aos netos e bisnetos risonhos.
“Em festejos juninos que são as do mês de junho, os estudantes que não puderam participar das festas, amarguravam nas “Repúblicas”. Mas, em compensação, eles escreviam cartas a determinadas famílias, solicitando da caridade cristã os desejosos manjares e licores que as donas de casa sabiam muito bem preparar. E pediam que enviassem às guloseimas para os endereços dos remetentes. Assim feito, no dia de São João à cidade cobria-se de cores e festas nas maiorias das residências, chácaras, recôncavos baianos e nas cidades do interior. Os estudantes recebiam nas “Repúblicas”; canjica, doces, bolo de laranja, licores em diversos sabores, amendoim cozido, torrado, milho cozido na espiga, pamonha, lêlê, batata doce cozida na brasa da fogueira e etc. Todas às iguarias são comidas típicas das festas juninas que abrangem as de Santo Antonio, São João e São Pedro. Representa as maiores festas do povo nordestino. Passando as festas, os estudantes agradeciam por cartas as famílias doadoras em rasgados elogios.”
As pilherias e versos jocosos contra padres e freiras, eram por demais ocorridos. “ Quando passava uma ou mais freiras do Convento das concepcionistas de Nª.Sª da Conceição da Lapa, perto de vários estudantes, eles versavam alto:
“As freiras da Lapa
Só mijam em pé
Não mijam sentadas
Porque “não qué.”
As freiras da Lapa, irmãs superioras, eram francesas e usavam um grande chapéu branco de abas bem largas, para se protegerem do sol e a saía longa arrastava no chão. Quando elas ouviam este verso, apressavam os passos. Foram com esses detalhes de roupa acima que diferenciavam das outras freiras.
  • Já outros historiadores baianos, afirmam que os estudantes baianos eram alegres, compenetrados, patrióticos e muito ligado à família. Diferente dos estudantes da Faculdade de Direito de Recife. Lá eles eram boêmios, anarquistas, polêmicos e muito patriotas. Mas, foram nesta Faculdade que brilharam muitos oradores, abolicionistas, políticos da nossa história. Foi ali que forjaram os primeiros jornalistas, poetas e romancistas. Saiu das mãos desses rebeldes criadores de palavras da oposição, o grito da liberdade.
Na “República” todos se conheciam, a amizade, o respeito para com as opiniões era fundamental no relacionamento. Ainda mais, quando se tratava de companheiro de quarto, tudo podia acontecer menos à perda de um deles. Foi o que aconteceu, um triste episódio relatado em crônica estudantil no jornal Gazeta.
“Perdemos um colega chamado Leopoldo Ferreira Filho, alegre, controvertido e muito levado à boêmia, companheiro de quarto e de Faculdade. Ingressou no primeiro ano por insistência do pai que o forçava a uma profissão sem gosto. Mas, nenhuma tentativa o privou da vocação que dormia dentro da sua alma. Tocar piano, ser pianista. Seguio a força do destino de que foi estimulado. Na “República” havia um piano e era ali que ele deitava às mãos e teclavam músicas, ele dizia: “Quando estou sentado diante do teclado, sinto uma doce emoção, ouço sons e minhas mãos correm ao teclado como se eu conhecesse cada nota, cada partitura. Fecho os olhos e meu corpo entram em sintonia. “Só abro os olhos quando à música termina”. Ficávamos incrédulos ao ouvir está afirmação. Adorava Carlos Gomes e Vilas Lobos. Era chamado para tocar piano em festas particulares e foi muito aplaudido. Nunca aprendeu a tocar piano dizia “só de ouvido”, o pai não consentia, vivia a dizer-lhe que seria um médico famoso, jamais consultara o filho sobre as suas aspirações. O rigor do pai e a obediência do filho, eram extremos. O pai não admitia a desobediência e o filho correto na disciplina. Ele pensava em vôos altos com à música e pouco interesse pela ciência. Mas o destino cortou-lhe as asas, adoeceu repentinamente.
Um acidente vascular cerebral levou-o a prostração, o jovem pianista na inércia de um leito ingrato. Corremos para avisar aos seus familiares e transportamos o amigo no primeiro trem para Cachoeira, cidade do recôncavo. Viaje lenta e chorosa, sobre a tortura de uma vida que foi tão mansa, tão bela e tão ingrata.
Seus pais já estavam esperando na estação. Ao vê-lo em maca, carregado por colegas, em desespero abraçam o corpo que o filho recebe sem gesto, somente os olhos do doente respondem com lágrimas. A mãe aos prantos diz: “Foste feliz e risonho, voltaste agora quase sem vida. Meu filho, meu filho...”
Ficamos com há família três dias e nada do Leopoldo melhorar. O médico da família já estava administrando medicações. Nada podíamos fazer, o quadro clínico parecia irreversível. Regressamos para Salvador, lamentamos a doença e também os estudos na Faculdade é contínuo.
Duas semanas após, recebemos um telegrama dos pais de Leopoldo, dizendo: “Leopoldo, faleceu hoje pela manhã”. A notícia entristeceu a todos na “República”, o piano foi fechado e coberto com uma capa de cor violeta e um jarro com flores, permaneceu sempre. Uma referência para o ausente.
Eu, Mário e Nathanael, seus companheiros de quarto, resolvemos mudar de residência, às lembranças do amigo eram uma dor constante. Fomos para a “República da Alegria” no largo de São Miguel, na Baixa dos Sapateiros. Conseguimos ficar no mesmo quarto o que era muito difícil.
Assim completamos os seis anos de Faculdade e comemoramos a formatura médica com os nossos familiares e lembramos dos colegas ausentes.
Não havia espaço para mulheres estudantes em “Repúblicas”. Para as mulheres estava destinado o Magistério e pouquíssimas se aventuravam em outras profissões liberais.
(Fonte extraído dos livros: “O Estudante na História Nacional” autor: Renato Bahia.
“República da Bahia no 1° Quartel do século” – autor: Lourival de Gouveia Moura)
Álvaro B. Marques – Salvador, 14.05.2007

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