Na pequena morada de formato rústico, é noite alta, o corpo desnudo de Alaké desce para a esteira no chão duro de tijolos. Os adeptos do culto, já tinham lavado em água de cananga e agora vão prepará-lo para a viajem sagrada. A proporção que o envolvem em algodão embebido em ouri, vestem, ou antes, enfaixam numa peça inteira de fazenda branca, deixando-lhe o rosto descoberto.
O corpo de Alaké parece todo dourado, jogam envolta do corpo, já revestido com lençol alvo, uma certa poção de pó dourado, parecendo ouro. Levam para o leito rico de toalha bordadas com as imagens dos orixás, enquanto seu corpo estiver insepulto. A companheira volta do banho de arruda e capim santo, e prostar-se ao lado do defunto. A ialê entra na sala e apaga as velas crepitantes feitas de caldo de cera, representando cada uma o animal minúsculo e fecha à sala.
Enquanto isso, os adeptos e convidados estão reunidos no lado de fora preparando os sacrifícios, os fogos, e as panelas de iguarias africanas.
Logo pela manhã, ao nascer do sol, renasce aos sambas dos que chegam. A companheira ( abilocó) ergue-se do chão e cobre a face do marido(ecó) para que durma sossegado. Já as encruzilhadas envolta do casebre, estão cheias de (padês) para Exu.
Os equejis (babala-ôs) vêm em visitas ao corpo de Alaké . E com eles cantam o orin-orixá-lá rompe o silêncio. E nesse momento que é eleito o seu substituto; um ngombo que tomará o nome de Elerê por lhe caberem o oficio e Mãe Dadá, a viúva do equeji silencioso.
Meio dia, hora do banquete da carne do mutumbi homenagem à Alaké. .Os olorins cantam e o samba ferve a chegada da viúva no terreiro. Ela vem coberta de contas e de roupas finas. Os seios presos dançam dentro da cumbã(faixa de pano que prende os seios). As chinelas ricas de meio pé batem ruidosamente no barro piloado. Depois da dança Mãe Dadá e as ialês de toda parte vindas servem às iguarias. A alegria vive em todos os semblantes. O marúfo é o “ sangue vivo” do homem que dorme...
O bangüê é levado em procissão, do terreiro para a casa de Alaké. Os olorins vão cantando em Kimbungo.E só os equejis-orixás entram na casa com o bangüê(padiola) coberta de palmas e de colchas verdes.Carregam o mutumbi e colocam no bangüê para a tumba.Nesse exato momento, ninguém mais poderá tocá-lo.Só quem pode resgatá-lo é o agbó, símbolo sagrado da trindade dos grandes orixás: Obatalá, Xangô e Ifã.
O povo africano está em romaria, ao som das músicas e das chulas dos sambas e um deles carrega na corda o carneiro alvo, parecendo vir dançando as mãos de Elerê vestido de branco. Elerê está entre os equejis-orixás e logo o bangüê alça-se nos ares aos ombros deles. Todos os participantes dançam e cantam, saracoteiam-se ao som dos canzás, dos agogôs, dos axexês. Se essas exéquias foram na cidade, o povo estava nas calçadas e nos caminhos até o cemitério e se for na fazenda ou engenho percorrem o campo até o local do sepultamento.
O préstito vai, o sol castigando no corpo dourado do equeji morto. Elerê, cabisbaixo, tocando o agbó, acompanha o bangüê.Logo após, a viúva, a bater coxas com as mulheres, diz-se possuída por Olucúm, deus do mar.
No cemitério, aparece o caixão mortuário, apenas, às taboas, sem alças e sem cruzes. Põem-no ao chão, paralelo ao bangüê. As músicas, os cantos, param. O silêncio vem por minutos. Elerê entra no esquife vazio e como se sepultando, canta um orin de sua inspiração, antes, um regongo de saudade em que imita o rugir do mar, como se fossem os estertores da morte, e a bonança, como o último alento da vida. Calam-se e cerra os olhos do defunto. Cobrem-no o rosto com um pano branco para não verem o rosto infunicado após morte.
Os olorins garganteiam. Os iumbis carregam aos ombros os “dois” mortos e à beira da sepultura, depõem seus esquifes. As ialês gritam repetidamente: Alaké!Alaké! Os golpes de atabaque ressoam e ultimam essas exclamações: Alaké ressuscitou...Todos os instrumentos tocam a um só tempo.Os ritmos mudam de instante a outro: - é um sinal que dará inicio em dias à decomposição da carne, a quebra do cabelo, a desarticulação dos ossos, o pó em que se torna.A mímica dos assistentes acompanha a música.E logo Elerê canta “sepultado” – Alaké ressuscitou...Elerê é arrancado do caixão pelos iumbís.Todos exclamam monossílabos diante de sua expressão de espanto. “Enterrado vivo, Xangô o salvará, despedaçando a sepultura com a fúria de seus raios destruidores”.As iaôs, em roda do mutumbi de Alaké, deixam e apontam o carneiro: Agbô!Agbô!.
E todos repetem o que elas exclamam. Os agoxuns arrancam as facas e entre o caixão e o bangüê, rasgam o animal vivo, do peito até o ânus e de uma puxada, tiram-lhe as entranhas. Metem-no, pelo rasgão, a cabeça de Elerê. Os instrumentos simulam os trovões de Xangô. As mulheres melodiam orins. O carneiro, ainda arquejante, parece despedir-se da turba com os olhos que se fecham e que se abrem. Coberto de sangue do sacrifício, Elerê dá tudo de sua voz. As iaôs transportam o corpo de Alaké para o caixão mortuário. As mulheres aproximam-se e depositam lembranças; moedas, jóias, bujingangas.As mães de santo juntam, com essas oferendas, os “miudos” do carneiro.Os equejis-orixás garganteiam as despedidas.Os ogoxuns levam o esquife sem tampa ao fundo da cova, ao som da música de Obatalá.As mulheres cantam orins de Ifã. A terra começa a cair, entre canções e sambas de Xangô, até o meio da sepultura. Elerê, desce e cantando, a orvalha com marúfo de dendê. Mãe Dadá o segue: samba e chora, recomeça. A cada bolo de terra, derramado no caixão, mais uma despedida ao que foi fazer a viajem a pátria bendita de Ilú-Ayê (Nigéria), onde morreram seus antepassados e onde nasceram os deuses de seu culto.Uns galhozinhos de arruda enfeitam o matombo.E um panelão de todos os restos do banquete é posto sobre ele.
A alegria não cessa. As iaôs tiram o carneiro da cabeça do novo equeji e põem no bangüê. O préstito volta para o terreiro, sambando sempre, cantando mais. Um tacho grande de cobre, no meio do terreiro está em fogo, com os temperos a dançarem no borbulho da água fervente. Os ogoxuns despem o agbó do couro e metem inteirinho no grande tacho. Arroja-se o samba. Elerê recebe por esposa ou cambonda a viúva de Alakê. O dia é da “carne”. E pela madrugada, a carne já separada dos ossos, é o repasto do itambi.
Pela cidade ou local onde passa o funeral é ressuscitado a quadrinha secular dos gêges que têm rivalidade com os angolados ou nagôs:
O cú babá
O cú gelê
Nego nagô
Virou sauê.
E quando um gêge morre, os angolanos dizem:
Nego gêge quando morre
Vai pra tumba de bangüê
Os parceiros vão dizendo
Urubú tem que comer.
Os urubús corvejam, no dia imediato do enterro, sobre o matombo da sepultura de Alaké. E o samba continua enquanto os orixás não receberem a quejila de Elerê.
Depois que a terra cobre o cadáver do pai de santo, ou da mãe de santo, vem a “noite do amor” nos candomblés gêges-iorubanos. As mulheres, com suas tentações e seus “me-deixes”, cantam aos homens que assistem e quando o “santo” não os “pega”, umas outras histórias são contadas em segredos. (afirmação sem fundamento.).
MEUS COMENTÁRIOS
Hoje essas cerimônias não mais existem ou não são mais integralmente obedecidos os rituais. Naquela época, as autoridades dos lugarejos e das fazendas dos recôncavos baianos só permitiam fazer esses funerais com autorizações dos donos dos escravos. Nos tempos do Império e nas primeiras décadas republicanas, eram considerados rituais primitivos e profanos pela igreja católica..
Álvaro B.Marques
SSA, julho de 2006
Bibliografia:
Os Mitos Africanos no Brasil – autor:Souza Carneiro
As Religiões Africanas no Brasil – autor: Roger Bastide
Os Africanos no Brasil – autor:Nina Rodrigues.
Folclore Geo-Histórico da Bahia e seu Recôncavo – autor:José Calasans
O Horizonte Místicos dos Negros do Brasil – autor: Arthur Ramos
Religiões Negras – autor:Edson Carneiro
O folclore no Brasil – autor:Basílio de Magalhães
O Negro na Bahia – autor:Luis Vianna Filho.
Viagem no Brasil – autor:Debret.
Reminiscência – autor:D.P. Kidder
A raça africana na Bahia – autor: Manoel Querino
Já comecei a ler os textos. Vou divulgar no meu blog. Abraços, Marco.
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