quinta-feira, 2 de maio de 2013

A FESTA DO SENHOR DO BONFIM EM 1845


“Cedo os bondes chegavam a ladeira do Bonfim, no inicio da subida se encontra os músicos barbeiros, tocando seus instrumentos; cavaquinho, violão, gaita, sanfona, flauta de bambu, berimbaú. As fitas coloridas e os estouros dos fogos fazem anunciar os dias de festas. Foram subindo a ladeira, todos descalços, com grandes chapéus de palha e fitas larga em volta dos chapéus, pendente os laços. Roupas engomadas, modestas. Flores nas lapelas, calças arregaçadas até os joelhos. As mulheres ao lado, meninos e curiosos rompiam o cordão. Mais abaixo da ladeira, vinham os negros “aguadeiros” vestiam com apuros, traziam seus animais carregados de barris d’agua. As cangalhas dos animais estavam enfeitadas de folhas verdes e nas cabeças dos burros tinham flores dos jardins; manjericão, dedo de moça, espirradeira. A música no ar, as filarmônicas e as bandas de barbeiros faziam o povo dançar. As carroças com galhos de pitangas e palmas de coqueiros em vários lugares. Os animais com guizos de campas, cada carroça com seus nomes; Morena, Trombone, Pastorinha e outros. Os sinos da Igreja repicavam e o povo gritava: Viva meu Senhor do Bonfim! Os chapéus, as bengalas e as mãos agitavam no ar em louvor ao dia sagrado do povo.
Na escadaria de mármore estavam as vendeiras com suas caixas de miudezas com rosários, verônicas, escapulários, santinhos, medidas, velas de cera. Tudo havia de comprar com lembranças. Era uma grande festa de rua. A cidade alta mudava-se quase toda para a península de Itapagipe para render homenagem ao Senhor do Bonfim. Dava inicio a Lavagem das escadarias e pátio, depois dentro do adro da Igreja. As negras e crioulas com suas tinas e bacias enfeitados, dentro água de cheiro para lavar com vassouras e esfregões de galhos secos. O samba bate forte, lá fora as dançarinas rodam as saías e levanta poeira. Depois, meladinha em cima do mocotó. Bebedeira grossa e lá vai briga, facão no ar e a Capoeira rolando nos quatros cantos do largo. A polícia chega e o rolo começa cabeçada na boca do estômago do soldado, cai gemendo, rasteiras e rabo de arraia, o povo faz roda, mais soldados chegam, o povo se afasta e os capoeiristas fogem.
Dentro da Igreja os fiéis oram, a missa começa, no meio um orador do povo vai ao púlpito resita com eloquência os devotos aplaudem. Termina a missa, mais fogos e as ganhadeiras fazem do adro terreiro, os requebros do corpo revelam.
As ruas palmas de coqueiros nos postes com bandeirinhas. Os romeiros com a sua orquestra; pistões, violões, pandeiros, cavaquinhos mostram a música e outros  carregam a iluminação de lanternas de papel. Já é noite a iluminação pública é gás, muito fraca. Os bondes puxados por burros vinham lotados, iam gente até no teto, voltavam sem passageiros para a cidade.
No Domingo, dia de luxo. O povo pernoitava, os fiéis iam a missa pra mostrar as roupas novas. Os vestidos de gorgorão, seda e de cassa. Os chapéus vindos de Paris. As botinas de couro de veludo. As crioulas de chinelinhas de pelica branca picotada, os chalés de cinquenta mil réis. As gravatas dos homens brancos de seda e muitas joias nos pescoços das senhoras. A noite no adro a Igreja aberta, cheia, mais para os namorados do que para romarias. Uma novena rápida, um sermão e depois a ladainha com outra missa solene. Lá fora o leilão de animais e novos Ranchos chegando. Os rancheiros gente prática são estivadores, engraxates, ama de cozinha (mucamba) lavadeiras, e todos que trabalham em seus ofícios, neste ano apareceram muito embarcadiços. Cantavam, saracoteavam. O povo perdia a cabeça, todos queriam ver o Porta Estandarte, o que levava a insígnias do Rancho o dançarino, podia ser homem ou mulher, quase sempre é homem de preferência rapaz.
Era madrugada, Itapagipe dormia logo depois do “fogo de planta”. Os romeiros dormem em bancos e camas improvisadas, muitos no relento. Já nasce segunda-feira gorda da Ribeira, dia do baiano filho de Oxalá, Senhor do Bonfim. Dia que as mágoas não existem, não é dia de moda, de luxo. É tudo simples, chapéu de palha, abano de cozinha em vez de leque. Tamanco novo em vez de calçado fino. A festa tomava conta da Baixa da Ribeira no Taineiro e largo da Ribeira seu ponto maior. As ruas estavam tomadas de vendedores com muitas frutas, abacaxi, melancia, rolete de cana, moringas cerâmicas, rosários de castanhas e de oricuri. A tarde, roupas mudadas de verão, as famílias sentadas nos bancos nos passeios das suas casas a apreciar os movimentos. Os homens em posição repimpados no meio dos familiares (a vista para as referências dos transeuntes) políticos, negociantes, funcionários públicos e outros. O forrobodó corria frouxo nas ruas com músicos e muito samba nos pés descalços. Os tocadores eram gente simples. As músicas saíram do agogô, reco-reco, berimbaú, flauta de bambú, canzá, xereré, atabaque, gaita de bambú e muita animação para as crioulas agitar seu corpo. É samba de roda e os negos assanhados fazendo pirraça com o som da música e as letras de deboche.
Nas casas dos ricos os moços vestiam o terceiro terno de gasemira e as moças espartilhos, cintura fina, cabelos empinados, os vestidos lambendo o chão. As golas cobriam os pescoços e as mangas iam até o meio das mãos. Os leques de penas largas para espantar o calor. O pianista toca as últimas novidades dos ingleses e franceses, valsa e polcas.
No largo da Ribeira a noite, iluminação a gás. Dois coretos, um com a banda dos meninos de São Joaquim e o outro a Lira de Apolo dos músicos barbeiros. Eles tocavam grande parte do tempo e o povo ao redor. As vendedeiras estavam lá com suas panelas brilhantes de alumínio com aruá de milho com rapadura de  Aratuipe a um vintém a caneca. Mingaus de milho, tapioca, arroz doce de beber, mungunzá de caldo, caldo de cana e muita gengibirra nos botequins de lonas, vendendo cachaça com caldo de abacaxis, laranja, caju, tamarino e água de coco. O samba rolou no fundo da Capelinha da Conceição. No Forte, um batucagê de massada. O povo alegre a sorrir e a cantar.
Entrar na Igreja e não visitar o “quarto dos milagres” é não conhecer a Igreja e nem a fé dos devotos no Senhor do Bonfim. Neste local, chamado também de “casa dos Milagres do Senhor do Bonfim”. “O vento fresco agitava os pés de cera pendurados no teto. Mãos, pernas, cabeças, braços e nas paredes retratos, mechas de cabelos, registros, muletas encostadas nas paredes. Quadros pintados de  rostos e localidades dos milagres, muitas fotografias, é impressionante a quantidade de demonstrações chamado de ex-voto”. Já pela manhã, o povo cansativo começa a voltar pra casa, os bondes cada vez mais cheios e as ruas esvaziando. Terça-feira é dia de trabalho, é dia do branco dá ordem e as malas cheias os romeiros voltam para as suas cidades dos Recôncavos e do interior baiano.”
(Fonte; narrativa no contexto do livro “Meu menino” autor: A. J. de Souza Carneiro.)
Meus comentários:
As festas populares em Salvador perderam muito de tradições baiana. Tudo faz crer que o povo não continuou, caiu no esquecimento e o Governo não teve interesse de administrar um legado na fonte turística da Bahia. A festa da Lavagem do Bonfim, assim chamado hoje, perdeu o brilhantismo. Os políticos e as elites tomaram conta da festa que antes eles chamavam de “festa de nego, eu não vou”. Os tempos mudam, mas a cultura permanece como testemunho de um tempo na História do País.

Pesquisa de Álvaro B. Marques.

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