“Cedo os bondes
chegavam a ladeira do Bonfim, no inicio da subida se encontra os músicos
barbeiros, tocando seus instrumentos; cavaquinho, violão, gaita, sanfona,
flauta de bambu, berimbaú. As fitas coloridas e os estouros dos fogos fazem
anunciar os dias de festas. Foram subindo a ladeira, todos descalços, com
grandes chapéus de palha e fitas larga em volta dos chapéus, pendente os laços.
Roupas engomadas, modestas. Flores nas lapelas, calças arregaçadas até os
joelhos. As mulheres ao lado, meninos e curiosos rompiam o cordão. Mais abaixo
da ladeira, vinham os negros “aguadeiros” vestiam com apuros, traziam seus
animais carregados de barris d’agua. As cangalhas dos animais estavam
enfeitadas de folhas verdes e nas cabeças dos burros tinham flores dos jardins;
manjericão, dedo de moça, espirradeira. A música no ar, as filarmônicas e as
bandas de barbeiros faziam o povo dançar. As carroças com galhos de pitangas e
palmas de coqueiros em vários lugares. Os animais com guizos de campas, cada
carroça com seus nomes; Morena, Trombone, Pastorinha e outros. Os sinos da
Igreja repicavam e o povo gritava: Viva meu Senhor do Bonfim! Os chapéus, as
bengalas e as mãos agitavam no ar em louvor ao dia sagrado do povo.
Na escadaria de
mármore estavam as vendeiras com suas caixas de miudezas com rosários,
verônicas, escapulários, santinhos, medidas, velas de cera. Tudo havia de
comprar com lembranças. Era uma grande festa de rua. A cidade alta mudava-se
quase toda para a península de Itapagipe para render homenagem ao Senhor do
Bonfim. Dava inicio a Lavagem das escadarias e pátio, depois dentro do adro da
Igreja. As negras e crioulas com suas tinas e bacias enfeitados, dentro água de
cheiro para lavar com vassouras e esfregões de galhos secos. O samba bate forte, lá fora as
dançarinas rodam as saías e levanta poeira. Depois, meladinha em cima do mocotó.
Bebedeira grossa e lá vai briga, facão no ar e a Capoeira rolando nos quatros
cantos do largo. A polícia chega e o rolo começa cabeçada na boca do estômago
do soldado, cai gemendo, rasteiras e rabo de arraia, o povo faz roda, mais
soldados chegam, o povo se afasta e os capoeiristas fogem.
Dentro da Igreja os
fiéis oram, a missa começa, no meio um orador do povo vai ao púlpito resita com
eloquência os devotos aplaudem. Termina a missa, mais fogos e as ganhadeiras
fazem do adro terreiro, os requebros do corpo revelam.
As ruas palmas de
coqueiros nos postes com bandeirinhas. Os romeiros com a sua orquestra;
pistões, violões, pandeiros, cavaquinhos mostram a música e outros carregam a iluminação de lanternas de papel.
Já é noite a iluminação pública é gás, muito fraca. Os bondes puxados por burros
vinham lotados, iam gente até no teto, voltavam sem passageiros para a cidade.
No Domingo, dia de
luxo. O povo pernoitava, os fiéis iam a missa pra mostrar as roupas novas. Os
vestidos de gorgorão, seda e de cassa. Os chapéus vindos de Paris. As botinas
de couro de veludo. As crioulas de chinelinhas de pelica branca picotada, os
chalés de cinquenta mil réis. As gravatas dos homens brancos de seda e muitas
joias nos pescoços das senhoras. A noite no adro a Igreja aberta, cheia, mais
para os namorados do que para romarias. Uma novena rápida, um sermão e depois a
ladainha com outra missa solene. Lá fora o leilão de animais e novos Ranchos
chegando. Os rancheiros gente prática são estivadores, engraxates, ama de
cozinha (mucamba) lavadeiras, e todos que trabalham em seus ofícios, neste ano
apareceram muito embarcadiços. Cantavam, saracoteavam. O povo perdia a cabeça,
todos queriam ver o Porta Estandarte, o que levava a insígnias do Rancho o
dançarino, podia ser homem ou mulher, quase sempre é homem de preferência
rapaz.
Era madrugada,
Itapagipe dormia logo depois do “fogo de planta”. Os romeiros dormem em bancos
e camas improvisadas, muitos no relento. Já nasce segunda-feira gorda da
Ribeira, dia do baiano filho de Oxalá, Senhor do Bonfim. Dia que as mágoas não
existem, não é dia de moda, de luxo. É tudo simples, chapéu de palha, abano de
cozinha em vez de leque. Tamanco novo em vez de calçado fino. A festa tomava
conta da Baixa da Ribeira no Taineiro e largo da Ribeira seu ponto maior. As
ruas estavam tomadas de vendedores com muitas frutas, abacaxi, melancia, rolete
de cana, moringas cerâmicas, rosários de castanhas e de oricuri. A tarde,
roupas mudadas de verão, as famílias sentadas nos bancos nos passeios das suas
casas a apreciar os movimentos. Os homens em posição repimpados no meio dos
familiares (a vista para as referências dos transeuntes) políticos,
negociantes, funcionários públicos e outros. O forrobodó corria frouxo nas ruas
com músicos e muito samba nos pés descalços. Os tocadores eram gente simples.
As músicas saíram do agogô, reco-reco, berimbaú, flauta de bambú, canzá,
xereré, atabaque, gaita de bambú e muita animação para as crioulas agitar seu
corpo. É samba de roda e os negos assanhados fazendo pirraça com o som da
música e as letras de deboche.
Nas casas dos ricos
os moços vestiam o terceiro terno de gasemira e as moças espartilhos, cintura
fina, cabelos empinados, os vestidos lambendo o chão. As golas cobriam os pescoços
e as mangas iam até o meio das mãos. Os leques de penas largas para espantar o
calor. O pianista toca as últimas novidades dos ingleses e franceses, valsa e
polcas.
No largo da Ribeira
a noite, iluminação a gás. Dois coretos, um com a banda dos meninos de São
Joaquim e o outro a Lira de Apolo dos músicos barbeiros. Eles tocavam grande
parte do tempo e o povo ao redor. As vendedeiras estavam lá com suas panelas
brilhantes de alumínio com aruá de milho com rapadura de Aratuipe a um vintém a caneca. Mingaus de
milho, tapioca, arroz doce de beber, mungunzá de caldo, caldo de cana e muita
gengibirra nos botequins de lonas, vendendo cachaça com caldo de abacaxis,
laranja, caju, tamarino e água de coco. O samba rolou no fundo da Capelinha da
Conceição. No Forte, um batucagê de massada. O povo alegre a sorrir e a cantar.
Entrar na Igreja e
não visitar o “quarto dos milagres” é não conhecer a Igreja e nem a fé dos
devotos no Senhor do Bonfim. Neste local, chamado também de “casa dos Milagres
do Senhor do Bonfim”. “O vento fresco agitava os pés de cera pendurados no
teto. Mãos, pernas, cabeças, braços e nas paredes retratos, mechas de cabelos,
registros, muletas encostadas nas paredes. Quadros pintados de rostos e localidades dos milagres, muitas
fotografias, é impressionante a quantidade de demonstrações chamado de
ex-voto”. Já pela manhã, o povo cansativo começa a voltar pra casa, os bondes
cada vez mais cheios e as ruas esvaziando. Terça-feira é dia de trabalho, é dia
do branco dá ordem e as malas cheias os romeiros voltam para as suas cidades dos
Recôncavos e do interior baiano.”
(Fonte; narrativa no contexto do livro “Meu
menino” autor: A. J. de Souza Carneiro.)
Meus comentários:
As festas populares
em Salvador perderam muito de tradições baiana. Tudo faz crer que o povo não
continuou, caiu no esquecimento e o Governo não teve interesse de administrar
um legado na fonte turística da Bahia. A festa da Lavagem do Bonfim, assim
chamado hoje, perdeu o brilhantismo. Os políticos e as elites tomaram conta da
festa que antes eles chamavam de “festa de nego, eu não vou”. Os tempos mudam,
mas a cultura permanece como testemunho de um tempo na História do País.
Pesquisa de Álvaro B. Marques.
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