segunda-feira, 24 de maio de 2010

UMA HISTÓRIA DENTRO DA RELIGIÃO PRIMITIVA - Candomblé


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Esta história se desenrola no último quarto do século XIX. Conforme relato do autor Souza Carneiro, A. J. em seu livro “Meu Menino” publicado em 1934 – págs. 48 e 50.
Parte do contexto.
“ Tia Benta, tomou a canoa na Ribeira.Saltou em Plataforma. Já do outro lado, ela vê as fábricas de tecidos e os operários bebiam mingau, outros estivam a rampa, montavam pedras, e mais adiante caminhavam alguns em direção a porta da lª fabrica, o apito das seis da manhã ainda não havia soado. A crioula passou por eles. Encontram outros que vinham das roças. Alegres, satisfeitos. Ela seguia a estrada. Caminhou por uma vereda nos matos ralos. Subiu uma encosta, um morroinho, lá em cima via uma casinha humilde dentro de cercado. É ali!... Prosseguiu em altos e baixos. Até que deparou com a cerca de nativo. Um canteiro de flores de suspiros cravos de defunto. Cortiço de abelha, cachorro pendurado em galhos de árvore doentes. Bandos de urubus nos dendezeiros. Um pombal, galinheiro cheio de galinhas. Um bode preto deitado na varanda. Tia Benta, abriu a cancela com a mão esquerda e com a direita foi ao chão, mergulhou dois dedos na terra úmida e levo-os a sua testa em respeito a morada. Não levar a maldade de ninguém. Bateu palmas três vezes. Um menino apareceu de um lado da casa, nu. Comia uma tora de jaca. A crioula disse o que queria em uma só palavra: Babalaô! O menino desapareceu. A porta abriu-se, Damiana veio e conheceu Tia Benta. As duas cumprimentaram-se a moda delas, dobraram-se o tronco para a frente e gesticularam, falando nagô. Babalaô, pai Jerônimo, apareceu logo. Os cabelos carrapinhos grisalho, a barba espessa, olhos mareados. Novos cumprimentos e beija mãos. Levou a crioula.
Toda a casa recendia. O chão terra batido. Um banco pesado, extenso. Outros pequenos, volantes. Tambores, quadros de imagens, no auto das paredes. Um símbolo de Salomão, pintado a sangue. Vários sinais de rabiscos, em todas as cores.
Entraram num quarto grande. O sol entrava pelas frestas das paredes. A claridade também penetrava nos vãos das telhas. O altar grande, elevado do solo. Ocupava toda a parede sem abertura para o exterior. Um santuário original da seita de Quimbanda raro em detalhes: Gruta em pedra bruta com frisos, torreões, arcadas, búzios encravados em valvas nacaradas. Varias contas em cores, pedacinhos de espelhos escamados, palhetas de prata polvilhada em ouro. Enfeites diversos; moedas, fitas, penas, trancinhas de cabelos, besourinhos secos, beija flor também seco. Anéis de rabo de tatu, ossadinhas de pintos, caveirinhas de gatos novos, múmia de hipocampo. No centro, tablado, tijelinhas com azeite de dendê, velas, pedras de Santa Barbara. Paninhos delicados, jarras miúdas, garrafinhas em circulo, cheias de mel, água e cachaça.
Os orixás espalhavam-se ali, imagens em madeira preta com suas partes pudicas exageradas, salientes. Outras mais civilizadas; xangô, oxum,obaluayê ou omolú; santo da bexiga. Oxossi, oxólufã: ( senhor do Bonfim velho ), oxalá: ( senhor do Bonfim, o da cruz ). Ôgún, yêmanjá: a mãe d’agua, exúm: o diabo. Ali estava representando os orixás sagrados kibundo da linha quimbanda.
Tia Benta gostou... Nunca tinha visto o pegí de pai Jerombo, como ele era chamado na língua da crioula. Uma beleza de santuário... Ele sorriu orgulhoso. Cruzaram língua nagô. Tia Benta queria consultar aos búzios, para isso levava zimbo disse a pai Jerombo, ele arregalou os olhos. A crioula mostrou a palma da mão, feita nela um circulo com índex. Ele sorriu intimamente. O dia nascera bem. Valia a pena ser babalaô... o adivinho, um bom oficio. ( naquela época eles consideravam “oficio” o adivinho ). O velho puxou um saquinho atrás do altar, uma roda de madeira bem usada. Sentaram-se os dois no chão. Ele, pai de terreiro, ela mãe de santo. Falaram frases invocando os deuses de ilu-ayê da África. Tia Benta soltou uma moeda de ouro na bandeja, dez mil réis. O negro fez a conta na cabeça; ela pagava vinte vezes mais. O normal é um cruzado a consulta. Ninguém lhe pagaria tanto. Contaram os búzios, vinte e dois. Jerombo sacudiu-os dentro das mãos.Atirou-os na roda. O coringa saltou, pulou, voltou ao seio dos outros. O babalaô grita; ôlópandédé!... Andorinha foi e voltou. Pouca gente, a agourar. Roibi: mas era a tôa. O amor dele abafado, adê molê; estava vendo o fim. Mostrou outro búzio. Depois, o amor quente em brasa; Xê gbonam. Tia Benta entendia também do riscado. Tivesse a certeza; gba gbo. Agora, a outra mesa e jogou os búzios. A coringa saltou duas vezes, voltou ao meio dos outros búzios; ôlôpandédé !... Pai Jerombo olhou pra tia Benta e disse-lhe: Agora é a sua sorte. Sacudiu os búzios, atirou no chão. Hum, hum, hum ! Fum, fum. Atafô ôju. Ele ia traduzindo. Um branco, uma catarata nos olhos. Andando pra traz como caranguejo. Ele prosseguia; interpretava. Depois falou. Esperasse agosto; ôxu kepó ti ódun. O homem fingia amor, ifá. Ele queria ter mulher pra botar em casa. Gbá si odó. Um abismo para ela, sum iyanú. Antes afogar-se. Ri, ninú ônu. O adivinho deu uma gargalhada e disse: o safado daria a entender que queria casar. Gbé niyaiuô. Um insulto pra ela. Gonto jú. Depois, uma surpresa má. Tulassim. O povo pegaria o homem, dava-lhe muito. Queria até açoitá-lo, gbon. Acabava entregando-o ao carcereiro. Ôluxó.Ele não morreria, gozaria a casa dela. Como o cata-sol. Okôtô. Tudo aquilo é verdade. Mas ela se esqueceria de tudo. Os fatos se sucederiam. Ela nem lembraria das palavras do babalaô. Oxalá não queria que ela lembrasse. Tia Benta é de oxalá. Pra ela tudo acabaria bem. O velho trouxe a mulher até a porta. A outra mãe de santo apareceu também. A língua nagô, yorubá, fez-se auto no ar. Despediram-se, curvando os corpos, cumprimentos, votos de felicidades. Tia Benta volta para a sua quitanda e toca a vida. O tempo passa tudo e aconteceu."
MEUS COMENTÁRIOS
O resumo do texto acima mostra a simplicidade das personagens, suas vidas, seus cotidianos, suas crenças na fé e com humildade em servir e praticar o culto como manda o preceito. Mostra uma seita que se expandiu no tempo de grandes dificuldades em praticar uma religião em que os crentes eram escravos e oprimidos. Conservaram o que a fé trouxe da África até um longo período, usando o verdadeiro ritual ancestral.
O tempo foi mudando e dificultando. A mistura com a religião católica deixou dúvidas na crença africana de hoje, na Bahia, como também no resto do país. Não existem mais Babalaô, o mestre adivinho, o olheiro tão importante nos terreiros. Hoje, os crentes do candomblé, principalmente os mais novos, preocupam-se com as suas vaidades nas vestimentas vistosas sacerdotais. Batizam terreiros com nomes em que dizem ser em yorubá o que na verdade não é a interpretação.O mesmo ocorre com os nomes dos sacerdotes modernos. Usam adornos exagerados que não condizem com os orixás nem com a tradição da seita. Não sabem mais fazer “ébó” misturam coisas que não são relacionados com o preceito. Colocam as oferendas em lugares que não são adequados. O mesmo ocorre com os oferecimentos para os orixás, esqueceram do local sagrado a “gameleira” ou a mata. Desrespeitam o “povo da rua” os mais significantes da seita. Confundem a mente dos mais novos adeptos, cria-se uma tradição falsa, enganosa.
Os deuses africanos choram porque seus filhos, não sabem mais exigir a herança religiosa. Será que as “mães de santo e os pais de santo”, não são mais os verdadeiros representantes dos orixás? Ah!... Que falta faz um Babalaô!...
Perdoa-me aqueles que levam o candomblé a sério e bato a minha cabeça nos pés dos orixás.
Álvaro B. Marques
SSA, 20.01.2010

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