A NARRATIVA É DE UM DESCENDENTE DO REI AFRICANO ESCRAVO NA BAHIA.
Já faz muitos anos. Mais de meio século passou-se, foi o único dia de repouso, o dia de sua morte, encerra-se o calendário de sofrimentos vivido por meu avô Igô dos Ossurumis Luís Felisberto Couve. Porém, a poeira do tempo não conseguiu apagar de minha lembrança a fisionomia bondosa e resignada do meu velho avô. Eu gostava muito do preto velho e tinha em mim o único neto. Ainda recordo com a sua cartola na cabeça, seu fraque de onde pendia uma grande corrente de prata, sua calça escura listradas de branco, em seus pés descalços, maltratados pelas duras caminhadas de trabalhos. Aqueles pés calosos que não suportavam sapatos, sendo estes quase sempre pendurados na ponta do guarda-sol. Saía pouco nos últimos meses que antecedeu à sua morte, quando saía era para ir à missa na igreja da Piedade, sua igreja preferida ( isso depois de ter aceitado à religião católica para esconder a sua religião verdadeira o islã ) caminhava até a porta da igreja, tirando-os então os sapatos para que eu os trouxesse de volta para casa. Lá para as tantas horas eu retornava à igreja e devolvia os sapatos. Recordo do seu porte de rei que foi reduzido a escravo, mas não perdeu a sua dignidade real. Aquele caráter era a insígnia mais bela de sua realeza. A grandeza d’alma superior à injustiça e estupidez dos homens que arrancaram das regiões de Angola e o venderam como se fosse gado humano.
E ele também gostava de recordar da sua África distante, onde um dia viu-se despojado pelos conquistadores brancos de seu poder régio sobre os Ossurumis.Foi por volta do ano de 1875 que a região de Ossurumis de língua Yorubá, foi dominada pelos espanhóis e portugueses e o enviaram para um navio negreiro numa viajem à além do Oceano. O Igô dos Ossurumis veio para a Bahia em companhia de um capuchinho de nome Frei Boaventura. Logo que aqui chegou, foi vendida a uma senhora chamada D. Julinha, residente na Barra Avenida. Não era mais o Igô dos Ossurumis, mas simplesmente o escravo Luís Felisberto Couve. Aqui ele conheceu a sua mulher Hortência Felisberto Couve e casou-se conforme a igreja católica manda. Moravam no fundo do casarão de D. Julinha mas, não suportavam as humilhações e maus tratos que passavam. Aquele sob cujo cetro se curvaram os guerreiros agora ia curvar-se ao jugo da escravidão, um trabalho forçado, a que reduziam seu povo. Os dias do calendário podem ser riscados como dias que se passaram, porém a humilhação fica presente como cicatriz, sempre a abrir em ferida.
O escravo Luís Felisberto Couve foi libertado antes do ano de 1882. Era uma liberdade adquirida, mas não a liberdade recuperada. Não era igual á liberdade na sua terra, era livre de trabalhar não mais como escravo, e sim como um pária qualquer de sua raça. Daí em diante ia ele ser um dos obscuros “ carregadores” das ruas da Bahia. Ele que fora carregado com honras pelos guerreiros Ossurumis, ia agora carregar aos ombros as “cadeiras de arruar” em que a sinhá moça ia para ás missas da matriz. Como também, carregava o senhor branco por meia pataca á rua da Vitória, Barra, Nazaré, Brotas, Liberdade. Quantas vezes eu percorri com o preto velho ás ruas da cidade, segurando o pano da “cadeira de arruar” a fim de receber o meu vintém em pagamento. A princípio, sua casa ficava perto da igreja de São Lázaro, bem distante do centro da cidade, não era vantajoso para o exercício de sua profissão de carregador. Mudou-se de residência para a Piedade, local mais central e que fora o lugar predileto da freguesia.
E assim foram decorridos os anos, até que um dia se divulgou a notícia de que o ex-escravo Luís Felisberto Couve fora rei dos Ossurumis na região de Angola. Neste dia em diante, ele passou a gozar de uma consideração especial. Os outros negros não permitiram mais que ele ficasse trabalhando como qualquer carregador. Todos os sábados iam levar-lhe em casa o afegeún (comida), cercando-lhe de atenções. Além disso, o Dr. Aurelino Leal, que sempre devotara uma amizade verdadeira ao velho carregador, tomando o conhecimento de que Luís Felisberto era o antigo rei dos Ossurumis, presenteou-lhe uma casa no Salete, onde ele passou a morar juntamente com minha mãe, Luisa Felisberta Couve e eu. Mas, poucos anos depois ele entendeu-se de mudar-se para o Beco do vai-quem-quer nos Barris.
Meu avô tinha costumes muito originais, conservador das antigas tradições dos maleses, dos quais descendia por um ramo dos seus ancestrais. Nunca se sentou à mesa para as refeições, comia sempre no chão com as pernas trançadas, conforme ritual malê. Também não usava faca (ibé), nem garfo, costumava denominar de “espeto”. Além disso, seguia rigorosamente as prescrições do Alcorão, livro sagrado do islã, lido por malês. Ele não tinha mais esse livro, mas sabia de memória. Não tocava em toucinho e carne de porco, gostava mesmo era de carne de carneiro e chegava até a venerar o animal. Mas não praticava o islamismo dos seus ancestrais, tinha medo de ser confundido como revolucionários maleses aqueles de 1835. Por esse e outros motivos escondia a sua real identidade religiosa, como vários outros faziam.
O que eu achava mais original no meu avô era o contraste entre o seu traje de “gala” e os pés descalços, cartola na cabeça, fraque do qual pendurava a corrente do seu relógio, calças escuras com listras brancas “a diplomata” e os sapatos (ubatás) amarrados pelos cadarços e pendurados no guarda-sol, esse um hábito constante, inseparável, havia chuva ou não sempre estava na sua mão o guarda-sol. Seu caráter bondoso, não era homem de muitos amigos, embora não tivesse inimigos. O circulo dos seus amigos íntimos eram aqueles que trabalhavam com ele na rua de “ganhadores”, com eles se demorava em conversa num português “estropiado”, pois sua língua materna era o Yorubá e nunca freqüentou escola para aprender à língua de sua nova Pátria. Sempre ele insistia em ensinar-me o Yorubá, só permitindo que eu falasse com ele em sua língua. Qualquer coisa que eu desejasse, desde a comida até o meu vintém de ajudante de carregador. Ele tinha o orgulho de falar á sua língua. O Português aprendi fora de casa e principalmente na escola. Ele não sentia complexo de sua língua, também não tinha de sua cor negra. Porém, não admitia quem quer que seja a fazer brincadeiras maldosas de sua raça, mesmo com outros negros de outras aldeias. Tenho na lembrança um fato marcante sobre esse assunto: eu ouvira uma cantiga de troça sobre os negros, e no meu íntimo infantil de imitação, fui cantar em presença do meu avô: Ocú babá, ocú gerê, negô nagô virou sarigê. Ele ouviu eu cantar e perdeu o controle dos nervos e deu-me uma pancada na cabeça de que ainda hoje conservo á marca. Era uma canção entoada por negros de outras línguas e ao passar o bangüê com o morto nagô, eles cantavam esse trocadilho. Havia muita rivalidade entre eles até na religião.
Não sei qual foi a idade do meu avô quando morreu, só sei que por volta de 1904 ou 1905, ele fechou os olhos a fim de abri-los para uma nova vida onde não há mais injustiça, com mais igualdade e mais amor. Seu enterro devia obedecer ás normas do ritual malê, ser levado ao cemitério com todas as juntas dos membros do corpo deslocados e vestidos com o seu abadá cerimonial. Foi enterrado no Campo Santo sem nenhuma cerimônia especial. Dizem que à morte iguala a todos. Mas no cemitério há distinção. Não teve o mausoléu de rei. Mas teve alguns palmos de cova. Ali, jaz, foi o seu último estado de sono eterno. Hoje o tempo apagou da sepultura qualquer vestígio de lembrança do meu preto velho, avô, Igô Ossurumis.
HISTÓRIA VERÍDICA NARRADO POR SEU DESCENDENTE ANTENOR BOAVENTURA COUVE, NA REVISTA ALMANAQUE DO MENSAGEIRO DA FÉ, ANO 1964. págns.96/99 – SALVADOR /BA.
É BOM LEMBRAR: Aqui na Bahia chamavam-se Malê, todos os africanos convertidos no Islamismo até o meado do século XIX. COMO TAMBÉM A DESIGNAÇÃO NAGÔ REFERIU-SE A TODOS OS AFRICANOS QUE FALAVAM A LÍNGUA YORUBÁ. NÃO SIGNIFICA UMA ETNIA.
N.B.: Foi mantida a fiel declaração do autor no texto.
Transcrito por: Álvaro B. Marques – Salvador, 28.05.2000
Prezado Álvaro Marques, bom dia.
ResponderExcluirFiquei feliz de conhecer o seu importante trabalho.
Gostaria de obter mais informações sobre o Almanaque Mensageiro da Fé.
Att. Marcos Santana
Centro de Estudos Miguel Santana